Desculpe-me por interromper sua leitura, meu jovem. Este
assento está vago? Hah, obrigado; na minha idade, ficar em pé durante uma
simples viagem de metrô se torna bem mais cansativo do que aparenta ser. As
pernas de um velho homem não o sustentam mais como antigamente.
Este é um daqueles livros de fantasia, não é? Aqueles com
os seres altos de orelhas pontudas, com os baixinhos carrancudos que carregam
machados e com jovens heróis humanos que tendem a mudar o mundo. Eu adorava
este tipo de livro quando era mais jovem, certamente quando tinha mais ou menos
a sua idade. Vinte anos? É, por aí. Nestes meus anos bem vividos, ouvi e li
várias destas histórias. Algumas, alias,
se passam em tempos atuais; eu,
inclusive, tenho algumas ainda gravadas em minha mente. Seria de seu
interesse escutá-las, meu jovem?
I
Qual seria sua reação caso eu dissesse que todas estas
histórias e mitos são reais? Que seres mágicos – os bondosos, os maldosos e os
indiferentes – vivem entre nós, passam no meio da multidão despercebidos aos
olhos de todos? É, meu jovem, aqui mesmo em São Paulo; não estamos falando de
seriados americanos ou filmes hollywoodianos. Pois eu te afirmo, eles existem,
apenas os olhos humanos se recusam a enxergá-los.
Era uma noite fria, a densa massa cinzenta que fecha
nosso céu não deixou a temperatura alterar-se durante todo dia. E, com o por do
sol, a temperatura apenas tendeu a baixar ainda mais. Era um bairro residencial
antigo de uma cidade aqui do interior do estado; as casas velhas em noites como
essas tendem a parecer ainda mais decadentes. Como se a garoa fina que caísse
levasse embora o pouco de dignidade que lhes restava.
O Monza cinza parou em frente àqueles velhos portões de
ferro enferrujados e de dentro do carro saiu Emerson. Embora o descendente de
alemães não fosse tão forte, Emerson era alto e tinha ombros largos, que faziam
ele parecer muito mais resistente do que ele realmente era. Usava um casaco de
couro que cobria uma camisa social preta com listras verticais cinzas;
pendurado sobre o ombro, estava uma grande bolsa de pano velha e surrada; ali,
Emerson carregava seus instrumentos de trabalho. Ele ajeitou a bolsa sobre o
ombro e andou em direção a entrada da velha casa.
Era um membro da Ordem do Silêncio. Mais que isso, ele
era um Caçador, um dos homens que mais se arriscam quando atravessam o véu do
sobrenatural. Sua ordem era – e ainda é – uma das únicas organizações humanas
dentro do sobrenatural; eles existem há séculos, sempre carregando consigo a
mesma antiga ideologia que se prega até a atualidade, seu lema é “O que
não é visto; não deve ser visto”. E assim eles trabalham; a Ordem do
Silêncio cuida para que os seres do véu – sejam eles seres elementais, de luz
ou trevas – não causem influências externas com seus atos. São eles que caçam
vampiros que começam a ter o prazer pela matança, que enfrentam personificações
de sentimentos malignos, que tentam conciliar as eternas rivalidades entre clãs;
e, no caso da atual missão de Emerson, até mesmo exorcizar assombrações.
II
Lá,
lá, lá, lá, lá...
Qual
a cor dos seus olhos?
Qual
a cor da sua alma?
Posso
deitar no seu colo,
Você
sabe, fico mais calma.
III
Emerson era jovem, tinha seus vinte e seis anos, um
caçador em plena forma física, item exigido para seu ofício. Saltou sem
problemas as grades de ferro que fechavam a velha casa. O corpo caiu no quintal
da casa num baque abafado pela grama mal cuidada, levantou-se e seguiu em
passos rápidos na direção da porta entreaberta.
Conforme caminhava, ele podia sentir a aura negra de
dentro da casa crescendo, e isso causava um leve incômodo no íntimo de seu ser.
As palavras de seu pai e mestre vieram a sua mente, como sempre vinham durante
as missões que realizava sozinho.
“Os seres das
trevas e os seres de luz são opostos. Eles se sentem mal um perto ao outro, sentem
que o outro não devesse existir.”
Ao primeiro passo na casa, o piso rangeu sob os pés do
caçador. A casa estava abandonada havia alguns vários anos, e o imóvel nunca
foi revendido graças a uma briga judicial que envolviam os herdeiros do lugar.
Existem inúmeros locais assombrados no mundo, meu jovem. Mas são muito poucos
aqueles que apresentam real perigo para alguém, a maioria deles são espíritos
errantes e mergulhados em dor e desgosto; estes, não tem a atenção da Ordem.
Emerson estava ali porque, três semanas antes, uma equipe jornalista de um
canal universitário visitou o lugar para fazer um documentário. O que também
era muito ordinário e sem importância para a organização, entretanto, neste
caso em específico, ocorreu o inesperado: Durante a filmagem, um repórter foi
atingido por um caco de espelho arremessado do outro lado do corredor. O objeto
cortante raspou no braço de um dos jornalistas, abrindo um corte profundo e
infeccionado.
Uma vez que a assombração do lugar tem raiva e amargura o
suficiente para ferir quem adentra o local, a Ordem do Silêncio tem de
interferir. Sabe, jovem, quando nós morremos, nossos espíritos tendem a ir para
o Além. O Além é algo incerto e misterioso para todos os seres do mundo. Não se
sabe o que acontece quando se atravessa a Ponte, não se consegue ver o que há
do outro lado. Nem mesmo magos poderosos e anciões elementais que vivem na
terra há milênios sabem o que existe do outro lado.
Contudo, não são todas almas que atravessam. Algumas, devido
às circunstâncias de suas mortes, à influências externas ou mesmo devido ao
caráter de seus seres; tendem a absorver para si, um pouco da essência da luz,
da treva, ou de alguma outra força mágica. Assim surgem seres como espíritos
guardiões – os famosos anjos da guarda –, assombrações, orbes e alguns outros
seres que habitam o mundo através do véu.
Ora, desculpe-me, perdi o foco da narrativa. Como ia
dizendo, Emerson adentrou a casa, fechando a porta atrás de si. Tudo que não
desejava era que mais alguém entrasse o local enquanto ele exorcizava a
assombração. A aura negra crescia ali
dentro, ele podia sentir. A assombração estava forte, envolta nos seus
sentimentos egoístas e cruéis. A sala de estar estava toda destruída, um sofá
velho e rasgado estava revirado num canto, um espelho estilhaçado estava
pendendo na parede, ademais móveis não pareciam existir ali além daqueles. A
escuridão encobria o olhar do caçador, mas ele estava acostumada com ela. Em
sua frente havia um corredor ao qual não podia enxergar muito adiante, ao lado
a cozinha; de certa forma, a casa era simples, não havia pesquisado nada sobre
a assombração, não sabia porque estava na casa. Isso não importava tanto quando
ele precisava expulsar o ser.
O caçador levou
uma mão até a bolsa, e retirou de lá uma pequena sacola de pano, desatou o nó
que a fechava e retirou ali de dentro um pendulo preso em uma corta prateada. Ele
tinha a pequena forma de uma seta. Segurou a corda, deixando o pendulo balançar
levemente.
- Siga a magia que os olhos não veem. Siga os passos do
invisível. – O jovem sussurrou quase com musicalidade. Seu instrumento guia
respondeu ao chamado e começou a rodar em todas as direções. – A fonte das
trevas.
E mais uma vez o pendulo deu atenção ao comando e
subitamente parou no ar, apontando para uma direção. Emerson levantou os olhos,
o corredor esta a sua frente. Segurando com firmeza o pingente com uma das mão,
ele deixou a outra mão repousar em um item de sua bolsa de couro. Olhou para os
lados, a assombração estava espreitando cada passo seu, tinha certeza.
IV
Lá,
lá, lá, lá, lá...
Posso
imaginar seu sorriso.
Naqueles
preciosos momentos,
Quando
só eu caminho
Lembrando
dele, eu aguento.
V
Emerson andava cauteloso pelo corredor, uma vez que a
alma penada já atacou um mero jornalista, que faria ela com alguém como ele. O
silêncio era aterrador, na sua mente, o caçador pensava que preferia que a
assombração se manifestasse e fosse direto para cima dele; o suspense de poder
ser atacado a qualquer instante lhe irritava, seja qual fosse a ameaça.
Quando já tinha adentrado o suficiente no corredor para
que o breu fosse quase completo, ele finalmente ouviu algo. Um alto estrondo
veio de trás, o chão tremeu abaixo de si; por impulso, o caçador já havia se
jogado no chão, rolando numa cambalhota e se posicionando contra o que viesse.
Ali atrás, o sofá rasgado estava atolado na entrada do corredor, suas laterais
quebraram os tijolos da casa e se fixaram ali, tampando o caminho de volta.
- Desgraçado. – Ele disse, o coração disparado tentava
encontrar calma. A respiração estava controlada, a mão que estava dentro da
bolsa de couro retirou dali uma pequena arca de madeira com símbolos mágicos
desenhados com nanquim em todos os seus lados. Ela estava fechada com um velho
cadeado que parecia poder ser facilmente quebrado.
Ele levantou-se sem se importar em retirar a sujeira do
casaco e da calça. Segurando a arca embaixo do braço, Emerson seguiu seu
caminho, o pendulo continuava apontando para o mesmo lugar de antes. Seus
passos cessaram alguns metros adiante, o caçador se deixou esboçar um sorriso.
O pendulo apontava diretamente para a porta à esquerda.
- Seus passos encontraram o invisível. Seus passos encontraram
a magia que os olhos não veem. – E, enfim, o pendulo caiu sob efeito da
gravidade, balançado pela corda prateada. Emerson jogou-a para dentro da bolsa
de couro e levou uma mão até a maçaneta.
Respirou fundo, o centro da assombração estava naquele
cômodo. O perigo também estava ali. As palavras de seu pai soaram na sua mente
mais uma vez, ele gostou das palavras e deixou um novo sorriso brotar na cara.
Girou a maçaneta e adentrou o lugar.
VI
Lá,
lá... Hm?
Não,
este lugar não é seu. Saia. Suma. Morra.
VII
Emerson fechou a porta atrás de si. O quarto era como
todos os outros da casa, vazio e degradado. Havia, ali, apenas a armação de
ferro do que era uma cama. A janela, que ficava logo acima da cama, estava
lacrada com tábuas de madeira mal pregadas. O desconforto do caçador aumentou
drasticamente uma vez que se fechou ali dentro.
Abaixou-se lentamente, deixando repousar um joelho no
chão, e, logo em seguida, colocou em sua frente o pequeno baú. Você me pergunta
o que é aquele pequeno item? É nada mais que um selo, meu jovem. A Ordem do
Silêncio conta com diversos membros que ocupam os mais diversificados ofícios
dentro da organização. E alguns destes são os magos, homens que dedicam suas
vidas ao domínio parcial de um dos caminhos superiores. O selo que Emerson
carregava consigo nada mais era que um artifício criado por um mago, capaz de
absorver para si uma quantidade considerável de manifestação de trevas. Era um
item padrão para caçadores que tinham de lidar com assombrações; uma vez que as
trevas são absorvidas para dentro da arca, o espírito perde a sua tendência ao
caminho negro e volta a seguir seu rumo normal, que nada mais é que atravessar
a ponte ao Além.
- Criatura atormentada, ouça as palavras de alguém que te
enxerga. O sofrimento que te assola não mais é necessário. – Ainda ajoelhado,
Emerson dirigiu as palavras em alto e bom tom para o nada. – O Além o espera.
Por um breve momento, pareceu que nada fosse acontecer. O
quarto voltou ao silêncio mortal, enquanto Emerson estava ajoelhado frente a
arca, uma das mãos dentro da bolsa de couro, a outra se apoiando no chão. O
caçador não pôde deixar de expressar reação tensa quando o espírito começou a
se condensar à sua frente.
- Este lugar não é
seu. É meu e dele. Saia, desapareça,
suma, morra.
Nunca deseje escutar uma assombração falando, meu caro.
Emerson tinha alguns anos como caçador em suas costas, ele estava acostumado
com cenas como aquela. Mas, para meros humanos, a voz de um espírito encarnado
nas trevas é como um sussurro estridente que faz gelar a alma.
A assombração da velha casa tinha a forma de uma garota,
mesmo que a forma estivesse turva, não poderia se imaginar que ela tivesse mais
que treze ou quatorze anos. Os cabelos castanhos maltratados cobriam quase toda
a face, e ela se vestia apenas com um vestido surrado e cinzento.
- Este lugar pertence aos vivos, tormento. E não a você.
– Emerson disse, o olhar fixo na garota. A mão que apoiava-se no chão tocou a
arca de madeira, que pareciam tremer. – E você não pertence às trevas.
- Eu pertenço a ele. Este lugar não é seu. Desapareça!
A voz pareceu um guinchar de uma velha e desgostosa
harpia. Junto a ela, a armação enferrujada da cama ao canto do quarto voou para
cima de Emerson em velocidade impressionante, trespassando pelo espírito
amaldiçoado no caminho. Contudo, daquela vez Emerson estava pronto para
qualquer atitude agressiva.
Rapidamente agarrou a arca de madeira e rolou para o
lado, a cama passou ao seu lado, destroçando a porta de madeira. Mais uma vez
deixou a arca ao chão, agora, ela mal permanecia no lugar de tanto que tremia.
- Pelos encantos do Selo em minha posse, nas palavras do
mago Stephan; eu, Emerson Caçador do Oculto reivindico as trevas para fora do
que não te pertence. – Conforme ele entoava as palavras que aprendera com o
Stephan, a turva imagem da garota parecia ter espasmos e leves convulsões . – O
destino da alma depois da Morte é o Além. Não lhe é de direito; oh Trevas,
Escuridão e Breu; reter para si o que não lhe é de direito. – A assombração
abraçou o próprio corpo e começava a gemer em gritos agudos e distorcidos, ela
se ajoelhou, todo o espectro tremia. – Eu lhe confino ao Selo de um mago que o
Domina, para que este lhe dê o apropriado uso no fluxo dos seres.
O espectro atormentado deixou um grito escapar tão alto,
que ele teve de levar as mãos aos ouvidos. Recuou um pouco, deixando a arca a
frente. Depois do último tormento da assombração, fez-se silêncio no quarto
mais uma vez. Emerson estava arfante, entoar magias de magos das trevas lhe
exauria muita energia, mesmo que a mágica não fosse feita diretamente por ele.
Era como se aquilo não lhe fosse direito, e, realmente, não era.
Ali, no centro do quarto, a assombração estava ajoelhada.
Os braços agora pendiam sem movimentação e o rosto estava olhando para o alto.
De seus olhos, nariz, boca e ouvidos; uma cena não muito bonita era vistas. As
trevas saiam de seu corpo, como uma névoa negra que fedia a enxofre. Aquela
densa fumaça saia do corpo lentamente e ia em direção a arca, que tinha se
destrancado sozinha e agora estava aberta, absorvendo as trevas.
O caçador respirou com mais calma, estava tudo
terminado...
VIII
Tudo tão complicado de se compreender... O que estava acontecendo? Ela se sentia
fraca, cansada, como se a vida estivesse lhe esvaindo. O olhar custou a se
mover, mas ela esforçou-se para encontrar seu amado, ali, de pé ao seu lado.
Ele era tão lindo! Não se importava que fosse tão mais velho, que fosse seu
professor, era com ele que desejava estar.
Não
importava que seus olhos agora a observassem com desprezo, desde que ele a
observasse. Não se importava nem mesmo que ele a tivesse trazido até aquela
casa abandonada, que tivesse a estuprado – ela queria, ora – que a tivesse
estrangulado até a morte.
Ela
estava morrendo, mas pôde morrer ao lado dele. Que havia de ruim nisso? Porque
seu peito sentia tanta amargura? Porque seus olhos queriam chorar, mesmo que já
estivesse morta?
Não,
aquele foi seu momento. Seu melhor momento. Tudo pertencia a ela.
E
ela... ela era toda dele. Só dele. Inteiramente dele. Completamente dele.
Porque afinal, eles se amavam, não é?
Não
é?
Não
é?
Não
é?
IV
- Não é?
Emerson levantou o olhar, os olhos se arregalaram e o
coração disparou. Ela não deveria falar mais, não... Porque a arca tremia a sua
frente? Porque ela parecia começar a se destroçar? Ele ficou sem reação por um
breve momento, um momento de desatenção e descuido, coisa que um caçador jamais
poderia ter. E este foi o único momento necessário para que tudo se revirasse.
A arca trincou, e no instante seguinte se estilhaçou em
milhares de pedaços. A escuridão voou para todos os lados, e, num instante,
Emerson se viu cercado de trevas. Aquelas malditas trevas. Emerson sentiu seu
ser irritado no âmago.
Aquela pequena e pobre criança não era mais nem de longe
uma assombração, meu caro. A sua amargura, a sua raiva e tristeza contidas
foram tantas que a tornaram algo muito pior, algo para o qual não havia mais
volta. Emerson enfrentava agora um demônio, meu caro.
Demônios nada mais são
que personificações de sentimentos nebuloso, personificações que agem
geralmente por puro instinto e sem raciocínio. Aquela criança atormentada se
movia através do misto de sentimentos famigerados pela sua derradeira morte. E era
por isso que um simples Selo não poderia mais impedi-la.
O espectro da garota estava agora de pé. Um sorriso
deformado e gigantesco estava em sua face, no lugar dos olhos, dois buracos sem
fim emanavam as trevas que agora eram o seu ser através de uma nuvens negras de
cheiros ácidos. Uma aura negra se envolvia ao redor dela, se manifestando como
correntes espinhosas que apertavam o seu corpo inteiro, pelos cortes dos
espinhos, mais de trevas se emanava.
- Você... Você! Este não é seu lugar, vai morrer.
Vou esquartejar seus corpo em cubículos, vou incinerar seu cérebro por dentro,
vou fazer nascer ácido entre suas pernas, Você vai morrer, morrer.... Não é?
Não é, amado?
As correntes a apertaram ainda mais, e o espectro gritou
em um misto de dor e prazer. E, respondendo aos comandos malditos, as trevas
que envolviam todo o lugar começaram a envolver Emerson na força de correntes
espinhosas. As primeiras voaram do chão, agarrando suas pernas antes que
pudesse saltar, logo depois, mais espinhos saltaram do teto, das paredes, de
todos os lugares e começaram a envolver o Caçador.
Emerson estava num misto de adrenalina e desespero; sua
mente estava perdida e ele via-se morto dali alguns segundos. Seria desta forma
que sua vida terminaria, seria assim que o Caçador encerraria seu ofício. Foi
naquele momento que as palavras de seu pai vieram até ele uma última vez.
“Os seres das
trevas e os seres de luz são opostos. Eles se sentem mal um perto ao outro,
sentem que o outro não devesse existir. Você tem um dom especial, meu filho,
meu discípulo. Você é um adepto da Luz, talvez o que mais consiga ter o domínio
dela dentro da Ordem. Não digo para que se torne um mago, meu filho, mas digo
que use este dom para o bem.”
O colar! Lembrou-se do amuleto que recebera de seu pai
quando fora realizar sua primeira missão sozinho. Emerson nunca passara por
tamanha dificuldade, nunca teve de se lembrar que seu pai havia lhe dado um
presente para as horas difíceis. O caçador deu um tranco com o braço e
conseguiu enfiá-lo para dentro da camisa, as custas do braço ganhar ainda mais
cortes. Agarrou ali dentro o pequeno pingente em forma de um touro, seu signo
de nascença, e o puxou com força.
- Eu sou Emerson Caçador do Oculto, Membro da Ordem do Silêncio
e Adepto da Luz. Sou eu quem reivindica o uso deste instrumento branco. – Ele
clamava em meio a gemidos de dor contidos, os espinhos cortavam a sua carne,
mas ele podia sentir a Luz, invadir seu ser.
Sabe, meu jovem, são raríssimos os humanos que tem
aptidão a um dos caminhos superiores. São três: Luz, Trevas e os Elementais.
Dentre os já poucos, são ainda menores os que tendem a ter a aptidão para a
Luz. São seres únicos e especiais, pessoas que tendem a usar da magia que
ultrapassa o véu do sobrenatural para realizar grandes feitos visando o bem.
Emerson Raitz era um destes, ou Emerson Caçador do Oculto, como era a sua
alcunha. Estou narrando este acontecimento em especial para você, porque foi a
primeira vez que este Caçador manipulou a magia por si próprio, e não através
de artífices de magos ou através de itens mágicos.
A luz foi liberada toda de uma única vez de forma pura e
densa, e Emerson pôde sentir, pôde sentir que ela se movia ao seu pensar. Num
instante, as correntes de espinhos se quebraram, pois, por debaixo delas havia
uma armadura reluzente e brilhosa. Emerson arfava, mas se sentia bem, seu
caminho superior o fazia sentir-se assim. Os espinhos se afastaram e o rosto da
garota se deformou em desgosto.
- Você e sua luz
não tem vez em meu antro. Aqui vocês não tem lugar, só há lugar para mim e para
ele. Saiam!
E novamente as correntes negras de espinho voaram contra
Emerson, desta vez em maior quantidade e com lâminas pontiagudas em suas
pontas. O caçador, entretanto, sentiu a presença do perigo e reagiu a altura,
moldando a Luz ao seu intento. A armadura reluzente se dividiu em mil lâminas
douradas que começaram a ricochetear as correntes para longe do caçador.
Emerson respirava calmo, a visão dele estava afetada, assim como cada ato e passo,
estava desgastado, prestes a desmaiar.
Esticou a mão, e uma das mil lâminas douradas veio ao
encontro dela em forma de uma espada de igual brilho. Em passos pesados e
lentos, Emerson começou a se aproximar do demônio, as lâminas continuavam a
ricochetear as correntes que tentavam se aproximar dele.
O espectro amaldiçoado começou a gritar e se desesperar,
em gritos agudos, deu passos para trás, mas se encontrou encurralada dentro do
mundo negro que criara. Aquilo que antes era um sorriso deformado agora era uma
boca gritando em desespero com mil dentes pontiagudos e desalinhados.
Emerson estava agora de frente ao demônio, as correntes
espinhadas pararam de atacá-lo, ficando caídas ao chão ao seu redor. Suas
lâminas douradas reluziam estáticas no ar, em prontidão. O espectro da garota
agora tinha parado de emanar escuridão pelos olhos, e ali estavam dois olhos
normais de garota. O cubículo negro também começava a falhar, dando leves
visões de como era o quarto. A garota chorava, as correntes de espinho ainda
apertavam o corpo dela, fazendo-a agora sangrar o que parecia ser sangue,
embora fosse ela apenas um espectro.
O caçador viu a tristeza em seu olhar. Ficou contente em
poder terminar aquilo que começou. Segurando a lâmina dourada em mãos, ele voltou
seu olhar para ela, e o espectro pareceu voltar o olhar para ele.
- Chega. Já pode descansar. Você pertence apenas a si
mesma.
E, no instante seguinte, ele atravessou o coração do
espectro com a lâmina dourada. O demônio deixou de existir, e agora o espírito
da garota deixou escapar um gemido de alívio. A lâmina dourada se desfez em sua
mão, assim como as outras centenas de lâminas que o tinham cercado. Ele estava
agora mais uma vez no quarto da velha casa, e, a sua frente, a turva visão do
espírito da garota começava a desaparecer no ar.
Ele não sentia mais as trevas.