terça-feira, 1 de outubro de 2013

Deste dia, digo:





Seguem adiante, aqueles caminhos da vida
E neles, os encontros se fazem e desfazem.
Faço certo dos risos de antes o sorriso de agora.
Faço certo da boa lembrança a dor já esquecida.

Seguem adiante, estes caminhos da vida
E neles, fluem desejos de felicidade. 




sábado, 14 de setembro de 2013

Contos do Além I - O Caçador do Oculto




Desculpe-me por interromper sua leitura, meu jovem. Este assento está vago? Hah, obrigado; na minha idade, ficar em pé durante uma simples viagem de metrô se torna bem mais cansativo do que aparenta ser. As pernas de um velho homem não o sustentam mais como antigamente. 

Este é um daqueles livros de fantasia, não é? Aqueles com os seres altos de orelhas pontudas, com os baixinhos carrancudos que carregam machados e com jovens heróis humanos que tendem a mudar o mundo. Eu adorava este tipo de livro quando era mais jovem, certamente quando tinha mais ou menos a sua idade. Vinte anos? É, por aí. Nestes meus anos bem vividos, ouvi e li várias destas histórias.  Algumas, alias, se passam em tempos atuais; eu,  inclusive, tenho algumas ainda gravadas em minha mente. Seria de seu interesse escutá-las, meu jovem?


I

Qual seria sua reação caso eu dissesse que todas estas histórias e mitos são reais? Que seres mágicos – os bondosos, os maldosos e os indiferentes – vivem entre nós, passam no meio da multidão despercebidos aos olhos de todos? É, meu jovem, aqui mesmo em São Paulo; não estamos falando de seriados americanos ou filmes hollywoodianos. Pois eu te afirmo, eles existem, apenas os olhos humanos se recusam a enxergá-los.

Era uma noite fria, a densa massa cinzenta que fecha nosso céu não deixou a temperatura alterar-se durante todo dia. E, com o por do sol, a temperatura apenas tendeu a baixar ainda mais. Era um bairro residencial antigo de uma cidade aqui do interior do estado; as casas velhas em noites como essas tendem a parecer ainda mais decadentes. Como se a garoa fina que caísse levasse embora o pouco de dignidade que lhes restava. 

O Monza cinza parou em frente àqueles velhos portões de ferro enferrujados e de dentro do carro saiu Emerson. Embora o descendente de alemães não fosse tão forte, Emerson era alto e tinha ombros largos, que faziam ele parecer muito mais resistente do que ele realmente era. Usava um casaco de couro que cobria uma camisa social preta com listras verticais cinzas; pendurado sobre o ombro, estava uma grande bolsa de pano velha e surrada; ali, Emerson carregava seus instrumentos de trabalho. Ele ajeitou a bolsa sobre o ombro e andou em direção a entrada da velha casa. 

Era um membro da Ordem do Silêncio. Mais que isso, ele era um Caçador, um dos homens que mais se arriscam quando atravessam o véu do sobrenatural. Sua ordem era – e ainda é – uma das únicas organizações humanas dentro do sobrenatural; eles existem há séculos, sempre carregando consigo a mesma antiga ideologia que se prega até a atualidade, seu lema é  O que não é visto; não deve ser visto”. E assim eles trabalham; a Ordem do Silêncio cuida para que os seres do véu – sejam eles seres elementais, de luz ou trevas – não causem influências externas com seus atos. São eles que caçam vampiros que começam a ter o prazer pela matança, que enfrentam personificações de sentimentos malignos, que tentam conciliar as eternas rivalidades entre clãs; e, no caso da atual missão de Emerson, até mesmo exorcizar assombrações.


II

Lá, lá, lá, lá, lá...
Qual a cor dos seus olhos?
Qual a cor da sua alma?
Posso deitar no seu colo,
Você sabe, fico mais calma.


III

Emerson era jovem, tinha seus vinte e seis anos, um caçador em plena forma física, item exigido para seu ofício. Saltou sem problemas as grades de ferro que fechavam a velha casa. O corpo caiu no quintal da casa num baque abafado pela grama mal cuidada, levantou-se e seguiu em passos rápidos na direção da porta entreaberta. 

Conforme caminhava, ele podia sentir a aura negra de dentro da casa crescendo, e isso causava um leve incômodo no íntimo de seu ser. As palavras de seu pai e mestre vieram a sua mente, como sempre vinham durante as missões que realizava sozinho. 

Os seres das trevas e os seres de luz são opostos. Eles se sentem mal um perto ao outro, sentem que o outro não devesse existir.


Ao primeiro passo na casa, o piso rangeu sob os pés do caçador. A casa estava abandonada havia alguns vários anos, e o imóvel nunca foi revendido graças a uma briga judicial que envolviam os herdeiros do lugar. Existem inúmeros locais assombrados no mundo, meu jovem. Mas são muito poucos aqueles que apresentam real perigo para alguém, a maioria deles são espíritos errantes e mergulhados em dor e desgosto; estes, não tem a atenção da Ordem. Emerson estava ali porque, três semanas antes, uma equipe jornalista de um canal universitário visitou o lugar para fazer um documentário. O que também era muito ordinário e sem importância para a organização, entretanto, neste caso em específico, ocorreu o inesperado: Durante a filmagem, um repórter foi atingido por um caco de espelho arremessado do outro lado do corredor. O objeto cortante raspou no braço de um dos jornalistas, abrindo um corte profundo e infeccionado. 

Uma vez que a assombração do lugar tem raiva e amargura o suficiente para ferir quem adentra o local, a Ordem do Silêncio tem de interferir. Sabe, jovem, quando nós morremos, nossos espíritos tendem a ir para o Além. O Além é algo incerto e misterioso para todos os seres do mundo. Não se sabe o que acontece quando se atravessa a Ponte, não se consegue ver o que há do outro lado. Nem mesmo magos poderosos e anciões elementais que vivem na terra há milênios sabem o que existe do outro lado. 

Contudo, não são todas almas que atravessam. Algumas, devido às circunstâncias de suas mortes, à influências externas ou mesmo devido ao caráter de seus seres; tendem a absorver para si, um pouco da essência da luz, da treva, ou de alguma outra força mágica. Assim surgem seres como espíritos guardiões – os famosos anjos da guarda –, assombrações, orbes e alguns outros seres que habitam o mundo através do véu. 

Ora, desculpe-me, perdi o foco da narrativa. Como ia dizendo, Emerson adentrou a casa, fechando a porta atrás de si. Tudo que não desejava era que mais alguém entrasse o local enquanto ele exorcizava a assombração. A aura negra  crescia ali dentro, ele podia sentir. A assombração estava forte, envolta nos seus sentimentos egoístas e cruéis. A sala de estar estava toda destruída, um sofá velho e rasgado estava revirado num canto, um espelho estilhaçado estava pendendo na parede, ademais móveis não pareciam existir ali além daqueles. A escuridão encobria o olhar do caçador, mas ele estava acostumada com ela. Em sua frente havia um corredor ao qual não podia enxergar muito adiante, ao lado a cozinha; de certa forma, a casa era simples, não havia pesquisado nada sobre a assombração, não sabia porque estava na casa. Isso não importava tanto quando ele precisava expulsar o ser. 

 O caçador levou uma mão até a bolsa, e retirou de lá uma pequena sacola de pano, desatou o nó que a fechava e retirou ali de dentro um pendulo preso em uma corta prateada. Ele tinha a pequena forma de uma seta. Segurou a corda, deixando o pendulo balançar levemente.
- Siga a magia que os olhos não veem. Siga os passos do invisível. – O jovem sussurrou quase com musicalidade. Seu instrumento guia respondeu ao chamado e começou a rodar em todas as direções. – A fonte das trevas. 

E mais uma vez o pendulo deu atenção ao comando e subitamente parou no ar, apontando para uma direção. Emerson levantou os olhos, o corredor esta a sua frente. Segurando com firmeza o pingente com uma das mão, ele deixou a outra mão repousar em um item de sua bolsa de couro. Olhou para os lados, a assombração estava espreitando cada passo seu, tinha certeza.


IV

Lá, lá, lá, lá, lá...
Posso imaginar seu sorriso.
Naqueles preciosos momentos,
Quando só eu caminho
Lembrando dele, eu aguento.


V

Emerson andava cauteloso pelo corredor, uma vez que a alma penada já atacou um mero jornalista, que faria ela com alguém como ele. O silêncio era aterrador, na sua mente, o caçador pensava que preferia que a assombração se manifestasse e fosse direto para cima dele; o suspense de poder ser atacado a qualquer instante lhe irritava, seja qual fosse a ameaça. 

Quando já tinha adentrado o suficiente no corredor para que o breu fosse quase completo, ele finalmente ouviu algo. Um alto estrondo veio de trás, o chão tremeu abaixo de si; por impulso, o caçador já havia se jogado no chão, rolando numa cambalhota e se posicionando contra o que viesse. Ali atrás, o sofá rasgado estava atolado na entrada do corredor, suas laterais quebraram os tijolos da casa e se fixaram ali, tampando o caminho de volta.

- Desgraçado. – Ele disse, o coração disparado tentava encontrar calma. A respiração estava controlada, a mão que estava dentro da bolsa de couro retirou dali uma pequena arca de madeira com símbolos mágicos desenhados com nanquim em todos os seus lados. Ela estava fechada com um velho cadeado que parecia poder ser facilmente quebrado. 

Ele levantou-se sem se importar em retirar a sujeira do casaco e da calça. Segurando a arca embaixo do braço, Emerson seguiu seu caminho, o pendulo continuava apontando para o mesmo lugar de antes. Seus passos cessaram alguns metros adiante, o caçador se deixou esboçar um sorriso. O pendulo apontava diretamente para a porta à esquerda. 

- Seus passos encontraram o invisível. Seus passos encontraram a magia que os olhos não veem. – E, enfim, o pendulo caiu sob efeito da gravidade, balançado pela corda prateada. Emerson jogou-a para dentro da bolsa de couro e levou uma mão até a maçaneta.
Respirou fundo, o centro da assombração estava naquele cômodo. O perigo também estava ali. As palavras de seu pai soaram na sua mente mais uma vez, ele gostou das palavras e deixou um novo sorriso brotar na cara. Girou a maçaneta e adentrou o lugar.


VI

Lá, lá... Hm?
Não, este lugar não é seu. Saia. Suma. Morra


VII

Emerson fechou a porta atrás de si. O quarto era como todos os outros da casa, vazio e degradado. Havia, ali, apenas a armação de ferro do que era uma cama. A janela, que ficava logo acima da cama, estava lacrada com tábuas de madeira mal pregadas. O desconforto do caçador aumentou drasticamente uma vez que se fechou ali dentro. 

Abaixou-se lentamente, deixando repousar um joelho no chão, e, logo em seguida, colocou em sua frente o pequeno baú. Você me pergunta o que é aquele pequeno item? É nada mais que um selo, meu jovem. A Ordem do Silêncio conta com diversos membros que ocupam os mais diversificados ofícios dentro da organização. E alguns destes são os magos, homens que dedicam suas vidas ao domínio parcial de um dos caminhos superiores. O selo que Emerson carregava consigo nada mais era que um artifício criado por um mago, capaz de absorver para si uma quantidade considerável de manifestação de trevas. Era um item padrão para caçadores que tinham de lidar com assombrações; uma vez que as trevas são absorvidas para dentro da arca, o espírito perde a sua tendência ao caminho negro e volta a seguir seu rumo normal, que nada mais é que atravessar a ponte ao Além. 

- Criatura atormentada, ouça as palavras de alguém que te enxerga. O sofrimento que te assola não mais é necessário. – Ainda ajoelhado, Emerson dirigiu as palavras em alto e bom tom para o nada. – O Além o espera. 

Por um breve momento, pareceu que nada fosse acontecer. O quarto voltou ao silêncio mortal, enquanto Emerson estava ajoelhado frente a arca, uma das mãos dentro da bolsa de couro, a outra se apoiando no chão. O caçador não pôde deixar de expressar reação tensa quando o espírito começou a se condensar à sua frente. 

- Este lugar não é seu. É meu e dele. Saia, desapareça, suma, morra. 

Nunca deseje escutar uma assombração falando, meu caro. Emerson tinha alguns anos como caçador em suas costas, ele estava acostumado com cenas como aquela. Mas, para meros humanos, a voz de um espírito encarnado nas trevas é como um sussurro estridente que faz gelar a alma. 

A assombração da velha casa tinha a forma de uma garota, mesmo que a forma estivesse turva, não poderia se imaginar que ela tivesse mais que treze ou quatorze anos. Os cabelos castanhos maltratados cobriam quase toda a face, e ela se vestia apenas com um vestido surrado e cinzento. 

- Este lugar pertence aos vivos, tormento. E não a você. – Emerson disse, o olhar fixo na garota. A mão que apoiava-se no chão tocou a arca de madeira, que pareciam tremer. – E você não pertence às trevas. 

- Eu pertenço a ele. Este lugar não é seu. Desapareça

A voz pareceu um guinchar de uma velha e desgostosa harpia. Junto a ela, a armação enferrujada da cama ao canto do quarto voou para cima de Emerson em velocidade impressionante, trespassando pelo espírito amaldiçoado no caminho. Contudo, daquela vez Emerson estava pronto para qualquer atitude agressiva. 

Rapidamente agarrou a arca de madeira e rolou para o lado, a cama passou ao seu lado, destroçando a porta de madeira. Mais uma vez deixou a arca ao chão, agora, ela mal permanecia no lugar de tanto que tremia. 

- Pelos encantos do Selo em minha posse, nas palavras do mago Stephan; eu, Emerson Caçador do Oculto reivindico as trevas para fora do que não te pertence. – Conforme ele entoava as palavras que aprendera com o Stephan, a turva imagem da garota parecia ter espasmos e leves convulsões . – O destino da alma depois da Morte é o Além. Não lhe é de direito; oh Trevas, Escuridão e Breu; reter para si o que não lhe é de direito. – A assombração abraçou o próprio corpo e começava a gemer em gritos agudos e distorcidos, ela se ajoelhou, todo o espectro tremia. – Eu lhe confino ao Selo de um mago que o Domina, para que este lhe dê o apropriado uso no fluxo dos seres. 

O espectro atormentado deixou um grito escapar tão alto, que ele teve de levar as mãos aos ouvidos. Recuou um pouco, deixando a arca a frente. Depois do último tormento da assombração, fez-se silêncio no quarto mais uma vez. Emerson estava arfante, entoar magias de magos das trevas lhe exauria muita energia, mesmo que a mágica não fosse feita diretamente por ele. Era como se aquilo não lhe fosse direito, e, realmente, não era. 
Ali, no centro do quarto, a assombração estava ajoelhada. Os braços agora pendiam sem movimentação e o rosto estava olhando para o alto. De seus olhos, nariz, boca e ouvidos; uma cena não muito bonita era vistas. As trevas saiam de seu corpo, como uma névoa negra que fedia a enxofre. Aquela densa fumaça saia do corpo lentamente e ia em direção a arca, que tinha se destrancado sozinha e agora estava aberta, absorvendo as trevas. 

O caçador respirou com mais calma, estava tudo terminado...


VIII

Tudo tão complicado de se compreender... O que estava acontecendo? Ela se sentia fraca, cansada, como se a vida estivesse lhe esvaindo. O olhar custou a se mover, mas ela esforçou-se para encontrar seu amado, ali, de pé ao seu lado. Ele era tão lindo! Não se importava que fosse tão mais velho, que fosse seu professor, era com ele que desejava estar. 

Não importava que seus olhos agora a observassem com desprezo, desde que ele a observasse. Não se importava nem mesmo que ele a tivesse trazido até aquela casa abandonada, que tivesse a estuprado – ela queria, ora – que a tivesse estrangulado até a morte. 

Ela estava morrendo, mas pôde morrer ao lado dele. Que havia de ruim nisso? Porque seu peito sentia tanta amargura? Porque seus olhos queriam chorar, mesmo que já estivesse morta? 

Não, aquele foi seu momento. Seu melhor momento. Tudo pertencia a ela.

E ela... ela era toda dele. Só dele. Inteiramente dele. Completamente dele. Porque afinal, eles se amavam, não é?

Não é?
Não é?
Não é?


IV 

- Não é? 

Emerson levantou o olhar, os olhos se arregalaram e o coração disparou. Ela não deveria falar mais, não... Porque a arca tremia a sua frente? Porque ela parecia começar a se destroçar? Ele ficou sem reação por um breve momento, um momento de desatenção e descuido, coisa que um caçador jamais poderia ter. E este foi o único momento necessário para que tudo se revirasse. 

A arca trincou, e no instante seguinte se estilhaçou em milhares de pedaços. A escuridão voou para todos os lados, e, num instante, Emerson se viu cercado de trevas. Aquelas malditas trevas. Emerson sentiu seu ser irritado no âmago.

Aquela pequena e pobre criança não era mais nem de longe uma assombração, meu caro. A sua amargura, a sua raiva e tristeza contidas foram tantas que a tornaram algo muito pior, algo para o qual não havia mais volta. Emerson enfrentava agora um demônio, meu caro. 

Demônios nada mais são que personificações de sentimentos nebuloso, personificações que agem geralmente por puro instinto e sem raciocínio. Aquela criança atormentada se movia através do misto de sentimentos famigerados pela sua derradeira morte. E era por isso que um simples Selo não poderia mais impedi-la. 

O espectro da garota estava agora de pé. Um sorriso deformado e gigantesco estava em sua face, no lugar dos olhos, dois buracos sem fim emanavam as trevas que agora eram o seu ser através de uma nuvens negras de cheiros ácidos. Uma aura negra se envolvia ao redor dela, se manifestando como correntes espinhosas que apertavam o seu corpo inteiro, pelos cortes dos espinhos, mais de trevas se emanava. 

- Você... Você! Este não é seu lugar, vai morrer. Vou esquartejar seus corpo em cubículos, vou incinerar seu cérebro por dentro, vou fazer nascer ácido entre suas pernas, Você vai morrer, morrer.... Não é? Não é, amado? 

As correntes a apertaram ainda mais, e o espectro gritou em um misto de dor e prazer. E, respondendo aos comandos malditos, as trevas que envolviam todo o lugar começaram a envolver Emerson na força de correntes espinhosas. As primeiras voaram do chão, agarrando suas pernas antes que pudesse saltar, logo depois, mais espinhos saltaram do teto, das paredes, de todos os lugares e começaram a envolver o Caçador. 

Emerson estava num misto de adrenalina e desespero; sua mente estava perdida e ele via-se morto dali alguns segundos. Seria desta forma que sua vida terminaria, seria assim que o Caçador encerraria seu ofício. Foi naquele momento que as palavras de seu pai vieram até ele uma última vez. 

Os seres das trevas e os seres de luz são opostos. Eles se sentem mal um perto ao outro, sentem que o outro não devesse existir. Você tem um dom especial, meu filho, meu discípulo. Você é um adepto da Luz, talvez o que mais consiga ter o domínio dela dentro da Ordem. Não digo para que se torne um mago, meu filho, mas digo que use este dom para o bem.” 

O colar! Lembrou-se do amuleto que recebera de seu pai quando fora realizar sua primeira missão sozinho. Emerson nunca passara por tamanha dificuldade, nunca teve de se lembrar que seu pai havia lhe dado um presente para as horas difíceis. O caçador deu um tranco com o braço e conseguiu enfiá-lo para dentro da camisa, as custas do braço ganhar ainda mais cortes. Agarrou ali dentro o pequeno pingente em forma de um touro, seu signo de nascença, e o puxou com força.

- Eu sou Emerson Caçador do Oculto, Membro da Ordem do Silêncio e Adepto da Luz. Sou eu quem reivindica o uso deste instrumento branco. – Ele clamava em meio a gemidos de dor contidos, os espinhos cortavam a sua carne, mas ele podia sentir a Luz, invadir seu ser. 
Sabe, meu jovem, são raríssimos os humanos que tem aptidão a um dos caminhos superiores. São três: Luz, Trevas e os Elementais. Dentre os já poucos, são ainda menores os que tendem a ter a aptidão para a Luz. São seres únicos e especiais, pessoas que tendem a usar da magia que ultrapassa o véu do sobrenatural para realizar grandes feitos visando o bem. Emerson Raitz era um destes, ou Emerson Caçador do Oculto, como era a sua alcunha. Estou narrando este acontecimento em especial para você, porque foi a primeira vez que este Caçador manipulou a magia por si próprio, e não através de artífices de magos ou através de itens mágicos. 

A luz foi liberada toda de uma única vez de forma pura e densa, e Emerson pôde sentir, pôde sentir que ela se movia ao seu pensar. Num instante, as correntes de espinhos se quebraram, pois, por debaixo delas havia uma armadura reluzente e brilhosa. Emerson arfava, mas se sentia bem, seu caminho superior o fazia sentir-se assim. Os espinhos se afastaram e o rosto da garota se deformou em desgosto. 

- Você e sua luz não tem vez em meu antro. Aqui vocês não tem lugar, só há lugar para mim e para ele. Saiam

E novamente as correntes negras de espinho voaram contra Emerson, desta vez em maior quantidade e com lâminas pontiagudas em suas pontas. O caçador, entretanto, sentiu a presença do perigo e reagiu a altura, moldando a Luz ao seu intento. A armadura reluzente se dividiu em mil lâminas douradas que começaram a ricochetear as correntes para longe do caçador. Emerson respirava calmo, a visão dele estava afetada, assim como cada ato e passo, estava desgastado, prestes a desmaiar. 

Esticou a mão, e uma das mil lâminas douradas veio ao encontro dela em forma de uma espada de igual brilho. Em passos pesados e lentos, Emerson começou a se aproximar do demônio, as lâminas continuavam a ricochetear as correntes que tentavam se aproximar dele.
O espectro amaldiçoado começou a gritar e se desesperar, em gritos agudos, deu passos para trás, mas se encontrou encurralada dentro do mundo negro que criara. Aquilo que antes era um sorriso deformado agora era uma boca gritando em desespero com mil dentes pontiagudos e desalinhados. 

Emerson estava agora de frente ao demônio, as correntes espinhadas pararam de atacá-lo, ficando caídas ao chão ao seu redor. Suas lâminas douradas reluziam estáticas no ar, em prontidão. O espectro da garota agora tinha parado de emanar escuridão pelos olhos, e ali estavam dois olhos normais de garota. O cubículo negro também começava a falhar, dando leves visões de como era o quarto. A garota chorava, as correntes de espinho ainda apertavam o corpo dela, fazendo-a agora sangrar o que parecia ser sangue, embora fosse ela apenas um espectro. 

O caçador viu a tristeza em seu olhar. Ficou contente em poder terminar aquilo que começou. Segurando a lâmina dourada em mãos, ele voltou seu olhar para ela, e o espectro pareceu voltar o olhar para ele. 

- Chega. Já pode descansar. Você pertence apenas a si mesma. 

E, no instante seguinte, ele atravessou o coração do espectro com a lâmina dourada. O demônio deixou de existir, e agora o espírito da garota deixou escapar um gemido de alívio. A lâmina dourada se desfez em sua mão, assim como as outras centenas de lâminas que o tinham cercado. Ele estava agora mais uma vez no quarto da velha casa, e, a sua frente, a turva visão do espírito da garota começava a desaparecer no ar. 

Ele não sentia mais as trevas.



segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Abraços



A alma foi, aos poucos, perecendo.
E antes confortável do que gélido
A foice negra veio como um emendo
O Abraço. Da morte, o sopro frígido.

Suspirou. O último indício de vida
Memórias, Sentimentos, Conquistas.
Faces Supérfluas não mais supridas
Distorcidas, Falecidas, Sofridas.

Mesclou-se então pavor e alegria
Sobras e Sombras eram agora, branco.
Novos braços o envolviam. O Protegia.
Outro Abraço. Da vida, um solavanco. 



 

Vivazes



E, por mais que sejam as supérfluas separações,
Sentimentos mais longe chegam; conquistadoras, conquistadas.
Quadrado cheio de tudo, sem vilões.
De você me deu ciência; espírito livre, sem amarras.

E, por que, “que nada te abale”, Alma independente?
Se tanto em tão poucos girares temporais, atado estou a me sentir.
Até onde podes voar? Corrente não será suficiente.
Sobre seus pés, seguindo em frente, “e que por nada você irá cair”.

E, de digitadas palavras, surgiu o fino fio
Que esbelta e cintilante, laços fraternos, súbitos vivazes, se formaram.
Coexistem, sim, saudades de um abraço macio,
Mas que há de se reclamar; quando almas certamente se tocaram?



Criatividade (?)



Criado. Criatividade. Criativo!
É sentado no suor que te espero
Envolto no glorioso mito,
De prateleiras do ursinho materno.

Criando. Criarei. Crias!
Expresso-me puro, só por você
São letras, de palavras minhas
Mares, céus, emboladas pra quem lê!

Criei. Criação. Criais!
Salto louco para aquelas montanhas
Metas dos olhos, novos ideais!
Expurgo as idéias, leituras castanhas! 




Por querer, eu acho que não é,
Nem simplesmente acaso do acaso (do acaso).
Rancor! Sabe que nunca foi amado!
E agora, chispou! Mancando num só pé!

Culpa, a vizinha, a outra;
Seguiu o adúltero, cheia de malas sem alça,
De puro peso (sobre outros). Sua atraente saia marota,
Agora, não mais, chega de correr descalça!

E ficou lá a Alegria, sem marido e sem vizinha.
Solteira, livre e dando pra todos.
Sendo casado e traído, você a amaria!
Só a Culpa e o Rancor? Hah! Largue de desgostos! 


 

Última Vez



“Vai-te”, me dissera, “leva seu destino”, só uma vez;
Fraterno, o abraço me fizera a vida.
Digo, certo, não saber, do fundo de minha (in)sensatez,
Como e tanto a voz por mim se fez acolhida.

Foi em marrom outonal, bem lembro.
E, da secura de uma desperdiçada transparência dos olhos,
vi ali a gênese de novo sentimento.
Passos de firmeza e pensares hesitantes; sem remorsos.

Já de longe, a alma fez tremer.
E meus passos se projetaram de volta, mas só no meu coração.